Luisa M. Diele-Viegas

Entrevista

Luisa M. Diele-Viegas

“Eu sou doutora em ecologia e evolução e atualmente pesquisadora de pós doutorado na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.
Minha pesquisa envolve a avaliação do impacto das ações do homem na biodiversidade, com enfoque em mudanças climáticas e répteis.
Além disso, também busco entender os vieses implícitos e explícitos dentro da academia, considerando questões de gênero, raça, etnia, classe, sexualidade e suas intersecções.
Sou líder climática, fundadora do projeto de divulgação científica Minha Amiga Cientista, uma das fundadoras do Fórum Clima Salvador, da rede de Mulheres na Zoologia e da rede Kunhã Asé de mulheres na ciência, além de integrar a Rede CoVida – Ciência, Informação e Solidariedade e o projeto de divulgação científica Ciência Brasileira é de Qualidade”

 

Ser cientista sempre foi um sonho seu? Nos conta um pouco sobre a sua trajetória até chegar no pós doutorado.

Eu decidi que seria bióloga aos 11 anos de idade, na primeira aula de ciências que tive no colégio. Antes disso eu já sabia que queria trabalhar com ‘bichos esquisitos’ (cobras… lagartos… essas coisas que ninguém gosta!), mas achava que para isso deveria seguir a carreira de veterinária. Quando cheguei no terceiro ano do Ensino Médio, me interessei muito pela questão das mudanças climáticas, mas não sabia ainda como juntar a biologia com as mudanças climáticas. Entrei na graduação de biologia e, quando estava decidindo meu projeto de mestrado, entrei em contato com a pesquisadora Teresa Cristina S. Ávila Pires, maior referência em Lagartos Amazônicos do Brasil. Ela me recebeu em Belém para fazer o mestrado e me mostrou a linha de pesquisa que permitiria eu juntar as minhas duas vontades: trabalhar com mudanças climáticas e com répteis. Desde então, trabalho com fisiologia térmica e o impacto da ação do homem na biodiversidade, com enfoque nas mudanças climáticas e nos lagartos e serpentes.

Quais os principais desafios que você identifica para ser pesquisadora no Brasil?

Ainda há muito preconceito no que diz respeito a ser mulher e pesquisadora, principalmente quando se trabalha com animais em campo. Já sofri ameaça de agressão física por estar liderando um trabalho de campo, onde um dos auxiliares não estava contente em ser coordenado por uma mulher. Também já sofri assédios dos mais variados, desde a graduação até hoje em dia. É algo bastante frequente. Para além das questões de gênero, ser pesquisadora no Brasil é lutar contra um sistema e um governo que desvaloriza a ciência, a pesquisa e a educação. Cortes de verbas, bolsas escassas e com valores desatualizados em relação ao mercado, falta de incentivo e falta de reconhecimento são algumas das piores coisas que precisamos passar para nos manter na pesquisa. Eu sou cria do Museu Nacional, era meu passeio aos domingos durante a infância e fiz estágio lá durante a minha graduação, e fui obrigada a ver com meus próprios olhos o museu queimando enquanto nós corríamos (literalmente) pela vizinhança em busca de garrafas d’água para ajudar os bombeiros a apagarem o fogo, porque não havia água para eles fazerem isso. Esse tipo de situação, tão inimaginável para outras realidades fora do país, é recorrente no Brasil. Para além do descaso, temos os ataques diretos também. Para quem trabalha com biodiversidade, ver a Amazônia e o Pantanal queimando por conta de questões meramente políticas e econômicas, é desesperador. Ver nossa orla ser inundada por um óleo misterioso, é desesperador. Ver o Cerrado ser transformado em pasto, é desesperador. Isso tudo vai minando a nossa força para lutar, mas a gente continua lutando porque a gente sabe que é isso que precisa ser feito.

 

A partir da sua atual experiência no exterior você acredita que é mais difícil ser mulher e pesquisadora no Brasil, ou a questão de gênero é forte em outros locais também?

A questão de gênero é forte em qualquer lugar do mundo. As discussões sobre a temática estão mais avançadas em outros países, sem dúvidas, mas o machismo e a misoginia existem em qualquer lugar. Nos EUA tive experiências boas e ruins. Vivencio questões de assédio moral ainda hoje.

 

Como você vê a imagem da ciência e, por consequência, a divulgação científica no Brasil, principalmente no Nordeste?

Como é possível fazer as pesquisas científicas saírem dos laboratórios e universidades e chegarem nas comunidades mais carentes?

Por muito tempo a ciência ficou restrita à uma ‘elite intelectual’. O cientista historicamente se coloca numa posição de superioridade em relação ao ‘resto’ da população, e isso é um reflexo também das opressões estruturais que pautam a nossa sociedade. Porém, esse distanciamento do cientista em relação a população não é apenas culpa do cientista – é estrutural. Tínhamos até pouco tempo atrás uma universidade elitista e inacessível, e isso mantinha a segregação. Mas isso tem mudado – com a implementação de ações afirmativas, vimos um aumento da diversidade no meio acadêmico e, junto dessa diversidade de pessoas, veio a diversidade de pensar, a diversidade de experiências, e a diversidade de formas de fazer ciência. Começaram a surgir mais ações de extensão (que é um dos pilares da universidade pública, diga-se de passagem… Talvez o pilar que mais é deixado de lado), e essa ponte com a sociedade começou a se formar. Com a pandemia, vimos o efeito dessa segregação histórica, com o aumento do negacionismo, mas também vimos o lado bom das ações afirmativas e dessa nova ponte de troca se estabelecendo, através do destaque dado a cientistas e divulgadores científicos como o Atila Iamarino e a Natália Pasternak nas discussões sobre a crise sanitária. Especificamente no Nordeste, eu vejo que estamos caminhando para que haja cada vez mais dessa interação ciência-sociedade. Hugo Fernandes, referência da divulgação científica no Brasil, é professor na UFC. Além disso, foi na UFBA que surgiu, em 2020, a primeira Rede Brasileira de Ciência Cidadã, e foi também na UFBA que surgiu a Rede KunhãAsé de Mulheres na Ciência.

 

Nos conta um pouco sobre a Rede Kunhã-Asé.

A rede KunhãAsé de mulheres na ciência é uma rede de apoio emocional e intelectual à mulheres na ciência. Nosso objetivo é promover o recrutamento de meninas para a ciência e a permanência de mulheres que já ingressaram na carreira, evitando o fenômeno chamado de vasamento de duto, onde as mulheres acabam desistindo das suas carreiras acadêmicas ao longo do caminho por conta das opressões que experimentamos. Nossa rede é pautada no conceito de interseccionalidade, onde focamos não só na questão de gênero, mas também,nas diferentes opressões (que são um reflexo da sociedade) que acabam prejudicando grupos subrepresentados na academia. Com isso, a rede visa combater o machismo, racismo, LGBTQIA+ fobia, o capacitismo, e suas intersecções. Dentre nossos grupos de atuação, posso destacar os quatro grupos norteadores da rede: semear, que visa o recrutamento de meninas para a ciência; germinar, que visa promover a permanência de mulheres na ciência ao longo da sua formação; florescer, que busca auxiliar mulheres cientistas a alcançarem posições de destaque através do desenvolvimento de ações e políticas institucionais inclusivas; e o transcender, que busca abranger as intersecções entre as diferentes pautas que a rede defende para promover um ambiente acadêmico mais seguro, saudável e inclusivo para todes.

 

Em meio a tantos retrocessos nas políticas de incentivo à pesquisa, como podemos estimular as novas gerações a não desistirem das carreiras científicas?

Nos inspirando em gerações passadas e inspirando as novas gerações. O caminho não é fácil, mas redes como a Kunhã Asé existem para mudar esse sistema e mudar esse padrão de opressão que vivemos. De pouquinho em pouquinho, a cada passinho de formiga que a gente dá, a gente vai tornando o mundo um pouquinho melhor. Redes de apoio são essenciais para promover estas discussões. A situação pode não estar tão boa agora, mas nós estamos – e continuaremos – lutando por um meio acadêmico melhor e mais inclusivo para todes.

 

Essa entrevista foi realizada por Karina Vieira Martins, mãe, bióloga, doutora em Ensino, Filosofia e História das Ciências e coordenadora operacional nos projetos socioambientais na PRÓ-MAR.